Improvisada por Lula na política, dona de perfil técnico, Dilma Rousseff faz cara de nojo para o modelo que vigora no Brasil desde a redemocratização, em 1985 –prevê a troca de governabilidade por favores políticos e monetários. Nos últimos dias, a presidente da República viu-se obrigada a superar a pretensa aversão. Abriu o cofre das emendas orçamentárias e a agenda, reativando a chama do velho modelo.
Dilma enxergara na crise econômica um pretexto para potencializar a preterição aos partidos. Com o PIB na UTI, ela priorizara as reuniões técnicas. Em movimento simultâneo, os partidos vislumbraram na mesma crise financeira matéria prima para antecipar o debate sobre a sucessão de Dilma. Ao notar que a discussão dos aliados contemplava planos alternativos à sua reeleição, a presidente acordou.
No intervalo de uma semana, Dilma reachegou-se ao PMDB do vice Michel Temer, distribuiu sorrisos num encontro noturno do PT e protagonizou três movimentos destinados a demonstrar que não está alheia às candidaturas presidenciais que vicejam no calendário eleitoral de 2012: Eduardo Campos (PSB), Aécio Neves (PSDB) e Lula III.
Num movimento, Dilma aconselhou-se com Lula. Ouviu dele, pelo telefone, que era preciso dar atenção à política. Noutro, arrancou do pseudoaliado Eduardo, na mesa de jantar do Alvorada, a declaração de que o veneno que o PSB serve ao PT nos municípios não intoxicará as relações da legenda com o governo federal. Numa terceira mexida, Dilma atravessou no caminho do tucano Aécio a pedra Patrus Ananias, um candidato competitivo do PT à prefeitura de Belo Horizonte.
Deve-se o despertar de Dilma, em boa medida, a Lula. Abriram-lhe os olhos o aconselhamento e, sobretudo, o comportamento do patrono. Para entender o que se passa, convém ouvir a explicação de um dirigente do PMDB: ao privilegiar a economia, Dilma converteu Lula numa espécie de muro das lamentações dos políticos do seu condomínio.
Desprezados em Brasília, os aliados passaram a enxergar no Instituto Lula, em São Paulo, na expressão do cacique pemedebê, um “gabinete presidencial do B.” As queixas e pedidos que Dilma represou passaram a desaguar nos ouvidos do antecessor, sempre abertos à política. Levada ao paroxismo, a situação faria de Lula articulador oficioso do governo que já não preside e de Dilma desarticuladora oficial do governo que deveria presidir. A titular preferiu acordar.
Ao mergulhar na política, Dilma revela disposição para entrar num jogo do qual parecia se auto-excluir. “Quando terminar o mandato, ela vai devolver as chaves para o PT”, chegou a dizer, num diálogo reservado, Eduardo Campos. Ficou entendido que a inquilina do Planalto deseja renovar o contrato por mais quatro anos. Resta saber até onde irá a paciência de Dilma e sua disposição para pagar o preço.
Nos primeiros oito meses de seu mandato, Dilma assistiu à conversão de seis ministérios em escândalos. O modo como lidou com a sujeira, trocando ministros como quem troca de sapatos, rendeu-lhe popularidade. Combinadas com os ataques aos juros cobrados pelos bancos, as vassouradas resultaram numa taxa notável. Segundo o último Ibope, 72% dos eleitores confiam em Dilma.
O apreço pela presidente cresceu na proporção direta do menosprezo devotado pelo brasileiro aos políticos. A platéia passou a enxergar em Dilma uma mandatária diferente. Essa aura de distinção, esboçada também nas pesquisas feita por encomenda do Planalto, tende a dissipar-se na medida em que Dilma, por necessidade ou conveniência, entrega-se ao velho modelo.
Dito de outro modo: em vez de ser vista como baluarte da resistência aos maus costumes, Dilma corre o risco de levar à moldura o retrato da rendição. No ano passado, um ex-ministro de Lula dissera que a faxina ministerial havia inaugurado nos partidos a “política do cá te espero.” Cedo ou tarde, a faxineira precisaria recorrer ao lixão, reciclando seus métodos. A hora da reciclagem chegou mais cedo do que Dilma gostaria.
No painel de controle do Planalto, 2012 aparece como um ano perdido. Dilma e seus operadores econômicos já contabilizam um crescimento miúdo. Com sorte, o PIB ficará nas redondezas dos 2%. Com azar, cairá abaixo de 1,5%. O governo tenta agora salvar o ano pré-eleitoral de 2013.
Incomodada com a relutância do empresariado em retomar os investimentos, Dilma joga suas fichas na expansão dos investimentos públicos, do crédito bancário e do consumo. O governo puxa para baixo a taxa de juros. Já editou nove minipacotes econômicos. E nada. A inadimplência é alta, a disposição para o consumo é mais baixa do que Brasília supunha e a capacidade dos ministérios de converter verbas disponíveis em investimentos é ainda menor.
Em reuniões sucessivas, Dilma cobra dos auxiliares impulso às inversões do setor público. Por ora, prega no vazio. Num desafio à fama de gestora da presidente, o governo não consegue nem mesmo gastar o dinheiro que está disponível no Orçamento da União. Afora a conhecida ineficiência das engrenagens da máquina, conspiram contra o destravamento de obras e projetos o medo da corrupção.
Encontra-se no Dnit, órgão que cuida da construção e manutenção das rodovias federais, o quadro mais sintomático. Alcançada pela faxina do ano passado, a repartição pisou no freio. A pretexto de fugir dos malfeitos que costumam fazer a festa dos auditores do TCU e da CGU, o Dnit passou a liberar verbas em conta-gotas, num ritmo paralisante.
É contra esse pano de fundo que Dilma tenta atenuar o desastre anunciado de 2012 e aparelhar-se para a pretendida reação de 2013. Planeja, por exemplo, ampliar as concessões de aeroportos, portos e rodovias. Uma forma de atenuar a sensação de descaso com o estratégico setor da infraestrutura.
Os aliados observam a movimentação de Dilma, olham para a encrenca da Europa e fazem o seu preço. O menosprezo de Dilma pelos partidos elevou o valor da fatura do apoio político. Ao distribuir conselhos à sua pupila, Lula recomendou-lhe que desse atenção especial ao PMDB. Fala com conhecimento de causa.
No seu primeiro reinado, Lula dera de ombros para o PMDB. Entendera-se com o pedaço do partido controlado pelos senadores José Sarney e Renan Calheiros e desprezara o grupo da Câmara, liderado por Michel Temer. A tática desembocou no mensalão. No segundo reinado, Lula atraiu o PMDB da Câmara e obteve o que se convencionou chamar de “governabilidade”.
Ao empinar a candidatura presidencial de sua chefe da Casa Civil, Lula cuidou de elevar o status do PMDB, enfiando-o na vice de Dilma. Tentou emplacar Henrique Meirelles, então presidente do Banco Central. Teve de digerir Temer. Agora, Lula incomoda-se com o modo como Dilma trata –ou tratava— seu vice e o partido dele.
Lula não exclui de seus planos a hipótese de substituir Temer na chapa de 2014. Mas considera que, a dois anos da sucessão, não é hora insinuar esse tipo movimento. Muito menos sob atmosfera de crise. Atento ao movimento das nuvens, o naco do PMDB leal a Temer olha para Dilma de esguelha. Estende-lhe a mão sem deixar de lançar olhares por cima dos ombros.
Dono de formidável máquina partidária e vistosa de vitrine eletrônica no rádio e na tevê, o PMDB não dispõe de candidato à Presidência. Nessa condição paradoxal, tornou-se novamente o que um de seus líderes chama de “a noiva mais cobiçada do pedaço”. Aécio Neves sempre ambicionou levar a “noiva” ao altar. Eduardo Campos entrou na fila.
Sabendo-se cobiçado, o PMDB atende aos interesses de Dilma de olho nas compensações. Acaba de ceder seu tempo de tevê a Patrus Ananias, o candidato que a presidente pôs em pé na praça de Belo Horizonte. Agora, espera ser chamado para uma conversa sobre reforma ministerial depois que forem abertas as urnas de outubro. O PMDB considera-se subrepresentado na Esplanada.
Para o comando do PMDB, uma reforma pós-eleitoral permitiria a Dilma escalar o time com o qual pretende jogar em 2014. Para atender à legenda, a presidente teria de desagradar outras agremiações. O PT já traz entreaberta a porta do seu paiol. Vem daí a grande dúvida: até onde irá a paciência de Dilma para jogar esse jogo?
Para complicar, há a crise econômica. Se não for capaz de oferecer respostas à encrenca financeira, ainda que se revele dotada de uma paciência de Jó, Dilma talvez não consiga deter a marcha dos projetos presidenciais alternativos.
Lula já declarou que, para evitar a volta dos tucanos, admite ser re-re-recandidato. Aécio Neves fala em “fim de ciclo”. Eduardo Campos observa a saúde de Lula com a mesma atenção que dedica aos sinais de debilidade da economia. E o PMDB procura a melhor posição no altar.